Jornal do Estado/ Bem Paraná
Carlos Moraes faz “ficção autobiográfica” (foto: Divulgação)
Ex-padre e ex-preso político, o escritor Carlos Moraes registra sua memória ficcional em livros
Leonardo Vinhas/Especial para o JE
A apresentação é quase novelesca: padre em dúvida quanto ao sacerdócio é preso, larga a batina e, ao sair do cárcere, troca o bucólico interior gaúcho pela urbanidade terminal da capital paulistana, onde começa a trabalhar como repórter. Entretanto, o roteiro não é fictício, e são as conduções literárias dessa história que a tornam não apenas crível, mas extremamente envolvente.
É a história de Carlos Moraes, que trabalhou, dentre outras, nas revistas Realidade e Ícaro, sempre focado no jornalismo investigativo. Depois de uma tímida estreia literária batizada de Como Ser Feliz Sem Dar Certo, ele começou a apresentar suas memórias: primeiro as da prisão, em Agora Deus Vai te Pegar Lá Fora, e depois as de jornalista iniciante, em Desculpem, Sou Novo Aqui, todos pela Editora Record. Nessas duas últimas obras, um humor nada clerical se mistura a uma sensibilidade que tem mais humanismo que cristandade – ou remeta justamente ao cristianismo iniciante, ainda não contaminado pela caridade burguesa.
Desculpem, Sou Novo Aqui, lançado há alguns meses, ainda não obteve a repercussão que merece. É uma crônica ensaísta, uma história moderna que se vale do passado para questionar certas dificuldades pelas quais passa qualquer um que decide abandonar certezas de longa data. Um aviso para os incautos que não sabem o perigo representado por uma mulher com luzinha ou o poder revigorante de uma sauna fantasma.
Não sabe do que se trata? Calma: leia o livro e entenda a importância desses conselhos. E por ora, fique com uma conversa com o autor, na qual, apesar de algumas recaídas sacerdotais, ele não passa qualquer sermão.
Jornal do Estado — Seus dois últimos livros são um exercício de “ficção autobiográfica” ou se tratam de livros de memórias mesmo?
Carlos Moraes — Por ocasião do lançamento das minhas livres memórias de cadeia, Agora Deus vai te pegar lá fora, eu disse o seguinte: “um pouco disso tudo aconteceu aqui; outro pouco aconteceu também, mas não aqui; outro pouco não aconteceu nunca e outro pouco merecia ter acontecido”. Trocando a cadeia de Bagé pela cidade de São Paulo, a explicação é a mesma para Desculpem, sou novo aqui. Teu modo de dizer, “ficção autobiográfica”, é perfeito. Toda a invenção é memória e em toda a memória já há um pouco de invenção.
JE — Já se escreveu que o narrador de um livro nunca é o autor, é sempre outra pessoa. Mas a familiaridade com a qual o senhor trata os sentimentos do protagonista sugere que a história é ainda mais “factual” que o senhor afirma. Tanto que é quase irresistível se dirigir ao senhor como “padre”.
Moraes — É curioso. Alguns ex-padres logo se tornam leigos razoáveis. Outros parecem levar para sempre, no jeito de ser e pensar, as marcas do seu passado. Vários amigos ex-padres me disseram depois deste último livro: “puxa, mas como você continua padre”. É engraçado, porque sou do tipo meio gozador e corintiano. No livro, procurei manter uma certa candura perplexa do personagem diante do seu novo mundo, vindo como vinha do interior gaúcho e de mais de 20 anos de Igreja. Esse era um pouco eu e um pouco quem recomeça tudo do zero, em qualquer época De muitas pessoas ouvi: eu nunca fui padre e vivi em São Paulo muita coisa do que você conta.
JE – Aproveitando esse gancho: o que fez o senhor – não o personagem João – largar a batina?
Moraes — Foram muitos os fatores e faz quase 40 anos. Mas há uma fase da vida em que a tensão entre o indivíduo e a instituição se torna particularmente sufocante. Mais tarde a gente descobre que isso não acontece só no caso padre-Igreja, mas entre o casado e o casamento, entre o empregado e a empresa, e assim por diante. Na época, eu achava que o modelo de sacerdócio católico – viver economicamente da igreja e sozinho numa casa paroquial fria – não era necessário para a missão de pregar e celebrar o Evangelho. Me sentia um tanto condenado a salvar senhoras por sua vez condenadas à salvação. Na verdade, isso era injusto, mas na época era como me sentia. Continuo achando que o sacerdócio pode ser vivido de muitas maneiras. Esse atual modelo celibatário da Igreja não tem futuro, nem é evangélico. Com poucas exceções, Jesus só escolheu homens casados para seus apóstolos.
JE — Como o senhor vê a Igreja Católica e a atitude dos sacerdotes no Brasil ?
Moraes — Esta resposta merece um livro. Tenho lido muito sobre Igreja primitiva, Cristo histórico. Nas últimas décadas foram escritos muitos livros sobre esses temas. Obras rigorosas, isentas, respeitosas com a pessoa e a mensagem do primeiro Jesus, aquele de Nazaré antes que catedrais de dogmas e teorias sobre ele se abatessem. Lendo-as, a gente percebe o quanto foi tudo um processo histórico, da redação dos evangelhos à formação da Igreja, da hierarquia e da ortodoxia. É à luz desse Jesus primordial que a Igreja tem de rever suas posturas. O problema é que, ao longo dos séculos, ela se tornou um fim em si mesma, seus mandamentos são mais celebrados do que a mensagem evangélica em si, papas atravessam oceanos para falar de camisinha e não lhes passa pela cabeça relembrar uma daquelas lindas parábolas de Jesus. Sem falar de padres que conseguiram reduzir o cristianismo a uma luta sem tréguas contra a masturbação.
JE — O retrato da São Paulo de Desculpem, sou novo aqui não parece ter 30 anos. Parece que o senhor esteve lá há uma semana, é tudo muito atual. Pelo visto, São Paulo não é tão moderna e cosmopolita como muita gente parece acreditar.
Moraes — O cenário do livro é mesmo uma São Paulo dos começos dos anos 70. A região dos Jardins já era um ponto chique da cidade. A Vila Madalena já pintava como um feérico reduto alternativo. Mais tarde os Jardins viveriam uma certa baixa com a explosão dos shopping centers, mas agora ruas como a Oscar Freire retomaram e ampliaram toda uma nobreza quase perdida. A Vila Madalena teve seus ideais domesticados pelo consumo. Sua rebeldia virou point.
JE — O anacronismo parece estar no jornalismo. Era a época das grandes redações, realizando apurações cuidadosas. Hoje as redações “enxutas” parecem se pautar por outros princípios. O senhor concorda que houve uma grande mudança?
Moraes — Houve. Na extinta revista Realidade, onde me iniciei no jornalismo, a gente tinha até um mês para fazer uma matéria, que ficava assim entre a grande reportagem, o ensaio e a monografia. Mas tudo bem. Concisão não faz mal a ninguém, nem ao leitor. De qualquer modo, hoje informação é o que não falta, olha só essa profusão de sites, blogs e, agora, o twitter. O problema, acho, é a falta de cultura instalada, ou o excesso de cultura clicada.
JE — Se tomarmos a história do personagem dos últimos livros como sua, podemos acreditar que o senhor pode até não ter mudado de religião, mas certamente trocou de time – do Inter pelo Corinthians. Ou ser corintiano é um grande ato de fé?
Moraes — Nem me fala, nem me fala. Na noite em que Inter e Corinthians decidiram a Copa Brasil, a primeira metade da minha vida, gaúcha, jogava contra a segunda, paulistana. Grande dor essa de sentir a alma da gente sem saber pra que lado chuta. No dia seguinte, por penitência, tentei torcer pelo Grêmio contra o Cruzeiro, na decisão da Libertadores. Meu Deus, foi como torcer pelo Palmeiras aqui em São Paulo, mesmo sabendo que o palmeirense no fundo não passa de um gremista travestido de lagartixa. Falando sério, gostaria de escrever um livro chamado Como educar um filho na fé corinthiana. Mas, por enquanto, só tenho o título. O título e a epígrafe, o salmo 126, que é toda a história do Corinthians: “O que semeiam entre lágrimas, cantando colherão”. O salmista só não falou de série B e série A porque não eram coisas do tempo dele.
JE — O senhor tem um livro com o título Como ser feliz sem dar certo. A pressão pelo “dar certo” está criando seres humanos encolhidos espiritualmente, frustrados. É mesmo possível escapar dessa pressão?
Moraes — O livro conta histórias de pessoas que, por pequenas bobagens, chegaram a grandes iluminações. Gosto muito dessa idéia da bobagem que salva, da bobagem como epifania. O livro tentou ser uma brincadeira com essa explosão de auto-ajuda que vigora por aí. Afinal, o que é o sucesso? Ganhar dinheiro? Ser feliz no amor? Na profissão, por modesta que seja? Ter bons amigos? Ter fé e ser capaz de ouvir a música que rege o baile da vida? Sucesso, felicidade e celebridade são coisas muito diferentes. Sinto que, em geral, a auto-ajuda se limita a técnicas que não mudam o coração. O que é um perigo. Um mau-caráter bom em técnicas de relaxamento vai ser apenas um mau-caráter mais relaxado. Mais perigoso.
JE — Conselhos não faltam ao João de Desculpem… O senhor recomenda alguns desses conselhos aos leitores?
Moraes — Não, não aconselho. Jefferson é uma machista grosseiro; Pessoinha é um feminista assustado; o Barbato é um anti-feminista amargo; Maura uma boazuda inconseqüente. Draúzia sim, mesmo com esse nome de raio, essa sabe das coisas.
JE — E uma última pergunta: mulher com luzinha ainda é um perigo?
Moraes — Eternamente. Um doce, abençoado e necessário perigo.