2024 – A vinhetinha de abertura do EP OAEOZ, da banda homônima, cai como uma luva nas memórias afetivas e fez a fita rodar pra trás, mas no clima de novidades que olham pro agora e pro futuro. Como o projeto “Invasão Independente”, do selo carioca 8-Bics, que lança o olhar pra produção da música independente dos anos 90 e 2000, com o lançamento em streaming de discos da cena indie brasileira. Serão dezenas de álbuns, EPs, singles e registros ao vivo de bandas de todo o país, remasterizadas. A iniciativa é do músico, pesquisador e jornalista Manoel Magalhães.
Curitiba obviamente não poderia ficar de fora! E é daqui, mais especificamente do selo De Inverno Records, o primeiro lançamento com previsão da obra completa de uma banda, a OAEOZ, que existiu entre 1997 e 2008, período em que lançou: dois EPs: “OAEOZ” (1998) e “De Inverno” (1999), e cinco álbuns – “Dias” (2001), “Take um (2002)”, “Às Vezes Céu” (2005), além do duplo – “Falsas Baladas e outras canções de estrada” e “OAEOZ ao Vivo na Grande Garagem que Grava”, ambos de 2008. “Ao vivo no cafenobule”, gravado em 1999, completa a lista que será disponibilizada. Nova oportunidade para degustar, por exemplo, o que pra mim é das preciosidades da música curitibana, o álbum duplo Falsas Baladas e outras Canções de Estrada que nunca recebeu a devida atenção.
1997 – OAEOZ nasceu da parceria de Ivan Santos e Igor R. Amatuzzi, em outubro de 1997 – e dela surgiu um movimento bonito que gerou uma produtora- selo, um festival e algumas noites mágicas, envolvendo bandas independentes de Curitiba, Paraná, de outros lugares do Brasil e até da Inglaterra.
Para celebrar a chegada de seus trabalhos fonográficos às plataformas digitais, o grupo fez, em agosto (de 2024), um show com parte de sua formação original – Igor Ribeiro (guitarra e voz), Ivan Santos (violão e voz), Rodrigo Montanari (baixo e voz) – e dois novos convidados – Martinuci (guitarra e voz) e Paulo Henrique Camargo (bateria) -, no 92, claro, o mais tradicional palco da cena musical independente de Curitiba e um dos mais importantes do Brasil.
OAEOZ é uma banda peculiar, que fez parte de uma geração que apostou fortemente na língua portuguesa, com bons compositores e letristas. Criadores de melodias cinematográficas cheias de personalidade, pontuando suas vidas nas canções e se tornando a trilha sonora de algumas almas soltas por aí. Entre estes, Igor Ribeiro, a quem sempre coloquei entre os mais importantes daquela geração – a despeito da discrição que o caracteriza e da mais profunda falta de vontade de fazer pose, inversamente proporcionais ao seu talento com as palavras, guitarra, violão, teclado, trumpete… Ouvir agora, novamente, os dois primeiros rebentos da banda, cujos nascimentos acompanhei bem de perto, registrando (e ajudando na produção) as gravações e os shows, está sendo muito bacana.
“Esses álbuns ajudam a contar a história do que foi feito no Brasil fora das grandes gravadoras e não podem ficar inacessíveis ao público. A intenção é abranger o máximo de cenas e estados possíveis, conseguindo contemplar a diversidade do país. Neste contexto, é uma grande alegria ter a primeira discografia completa de uma banda no projeto, poder resgatar todo o trabalho fonográfico da OAEOZ é também ajudar a contar a história da cena de Curitiba, uma cidade muito importante para a música independente brasileira”, Manoel Magalhães.
Os eps foram originalmente lançados em formato de demotape, ou fitas-demo, fitas cassetes bacaninhas que serviam como cartão de visita das bandas, na maioria das vezes, em registros de pré-produção feitos “às próprias custas”. Quem viveu sabe, na era pré-internet, a regra dessas gravações era serem caseiras, não raras vezes do começo ao fim: gravação no quarto da casa; capa, encartes e silk, flyers e cartazes dos shows, gerados nos computadores e impressoras da sala (ou quarto) de um dos integrantes. No caso aqui, na nossa casa. Quando muito, o recém criado estúdio de um amigo era o local viável – ou um amigo levava o estúdio pra casa de alguém (Mas essa é história pros próximos capítulos!)
Instantâneos musicais
Foi tudo muito rápido: de repente, sou informada de um reencontro d’OAEOZ – quase ao mesmo tempo em que fico sabendo sobre o lançamento em streaming e volto a ter a banda ensaiando em casa, como nos velhos e bons tempos!! Sobre as imperfeições das gravações dos “velhos e bons tempos”, Ivan sempre teve a serenidade de dizer que discos são retratos de um momento, não precisam ser a obra definitiva; são como uma foto do momento, às com pouca luz, noutras desfocada, ou que ganhou alguma mancha do tempo – e é exatamente esse clic do que a banda/artista vivia naquele momento, que importa.
De minha parte sempre achei, também, que alguém que gosta de música de coração aberto – e mesmo quem escrevia profissionalmente sobre – tinha que ser capaz de ouvir as fitas cassetes, ou os cds alternativos depois, independente da qualidade técnica da gravação, e mesmo assim sentir quando tinha nas mãos algo precioso.
Posto isso, ao ouvir o “novo” EP, OAEOZ, primeiro lançamento da banda – agora remasterizado com a tecnologia que tirou o véu e trouxe cada instrumento para o seu lugar sem roubar o do outro ou se esconder -, a minha primeira reação foi um misto de estupefação, enrolada numa certeza irônica e emocionada que sussurrava suavemente aquele ‘eu já sabia’- foi uma redescoberta acalentadora.
Declaração de intenções sem querer, trilha sonora para corações adolescentes ou não, descobertas de vida. Palavras que contam histórias como cenas de filmes, jovens rodando a noite em busca de sensações, vivendo romances nem sempre consumados, recados doces transbordando desejos de corações que buscavam acalento, sem saber ao certo para onde iriam. Ouvir isso tudo sem a névoa da produção precária da época tem sido muito bonito. Essa é uma forma de valorizar as histórias que nós escrevemos todo dia.
Jovens, afiados, fazendo o que sentiam prazer em fazer. Era a época da casa das jabuticabas, um casarão datado de 1929, no Campina do Siqueira, com sótão incrível, um gramado que se agigantava (até outro dia, soube neste fim de semana que ela já não está mais lá…o inevitável até demorou!); com uma linda porteira verde que acolhia como se a gente estivesse chegando a algum lugar do passado – mas era tudo muito vivo e pulsante, mesmo, aquele momento ali. O astral dela tá impregnado nesta primeira fase d’OAEOZ. Na época, o Igor era nosso vizinho e os rapazes iam para lá e ficavam horas naquele sótão, tocando e fazendo a trilha das minhas tardes de sábado. Diferentes fases de vida e gerações se encontrando para quebrar tabus, se expondo na língua mãe, entregando sonhos, romances da madrugada, desajustes e a sensação de, ali, ter encontrado finalmente, o ‘nosso’ lugar.
Os backings são ouvidos. A voz de compositor do Igor, cantando suas músicas, tá mais clara, sem perder o estilo dele de cantar e mostrando toda beleza que sempre vi no que ele escreve e canta, em seus diferentes projetos digas-se, pois o Igor também tem preciosidades que aguardam o reconhecimento. O Igor é foda!!! E tem a personalidade tranquila e agregadora dele, pra completar…
OAEOZ foi a primeira banda efetivamente montada pelo Ivan. O Igor e o Rodrigo eram guris, literalmente. O Camarão era já um veterano da cena curitibana a quem admirávamos, um artista compositor, tocando bateria. Na profícua década de 90 do século passado, Curitiba já passara por uma fase de domínio do inglês nos porões e garagens, tentara se mostrar nacionalmente sua faceta mais pop e, parecia, viver uma entressafra, naqueles últimos anos da década de 90. Era uma fase em que eu, ainda, prestava muito mais atenção nas letras e no cantor, do que na parte instrumental. Mas, até ouvir cada instrumento aprendi com OAEOZ e suas gravações feitas em casa! E, agora, sob o efeito do tempo que passou, me surpreendo cada vez ao ouvir a parte instrumental. O baixo do Rodrigo, que parece até estar com algum efeito; as sutilezas e porradarias do não baterista, Camarão, e os rifs do não guitarrista, Ivan Santos, estão sendo verdadeiras redescobertas. E ainda tem os detalhes do violino do Eduardo e os trumpetes discretos do Igor. Quando eles sobem o tom… é canção-noise das boas!
Tempo, tanto tempo, qualquer tempo
Possibilidade
Tempo pra tudo
Tudo ou nada
E Talvez
a mesma coisa
tudo e o nada
Tudo, talvez, no espaço
O que existe depois do espaço
Seria a galáxia do nada
Seria a galáxia do nada…
Venha comigo, pegue
Pegue a sua espada
Vamos para uma caminhada
Vamos atrás do nada – Igor Ribeiro/OAEOZ
OAEOZ: três canções em 14 minutos
1998- Tempo vira Windows sem aviso prévio, nesta reedição de uma autêntica amostra da faceta “mercuryreviana” d’OAEOZ. Começa na boa, às vezes meio fechada em si mesma e, quando você se dá conta, foi levado por um pequeno turbilhão sonoro. A capa, uma imagem de Marcelo Borges em pb, conversa com a proposta da banda em sua simplicidade.
A densidade de Tempo, canção que pode soar pueril para alguns, era pra mim como um chamado pra ir “pro tudo ou pro nada” da vida, bem ao estilo Igor/OAEOZ de ser. Embalada pelo contrabaixo tagarela, as linhas do violino do Eduardo que costuram a música conduzindo a um espaço musical que reverbera junto com a guita e os backings… Uma caminhada de som pelas noites da cidade, entre a Osório e a Visconde do Rio Branco, tantas vezes, rumo à vida que a gente tinha pela frente. Vem junto com uma vinheta serena, que parece querer abrir os caminhos. Cai no noise de Windows, que não dispensa o violão para deixar a guitarra falar alto junto com backings quase envergonhados… E vai descansar em Contato, uma das minhas primeiras preferidas, embora seja difícil escolher. O importante é que considero uma bela representação do jeito de escrever música do Igor.
No começo, ele parece convidar a gente, falando baixinho, para viver essa história – embalado no violino que até parece fazer mais sentido agora, ouvido com a calma que só tempo proporciona… Sutileza, sensibilidade, olhar cinematográfico, uma certa discrição e a entrega sincera em cenas que pareciam surgir na minha frente ao ouvi-lo cantando…. Vejo, ainda hoje, ‘a cidade dormindo pra ela dançar na rua….’ rsrs…
E, agora, isso me lembra a gente indo pro 92 pra mais um show…ou o pessoal lá no 1001, no tijucas, as lisergic brainstorms…cenas da cidade construídas com nossas vidas, né?
Concluo que ep fez bem seu papel de tentar mostrar um pouco como era OAEOZ ao vivo – altos e baixos, o violino demarcando linhas de costuras claras nas canções e o noise junto, criando um redemoinho sonoro que depois, às vezes, leva a gente de volta pra calmaria… Muito bom que tem esse ep com o violino, foi o único com Eduardo na banda.
A cidade dorme
enquanto estamos na rua
a planejar as horas seguintes
Seus traços orientais e o meus garranchos
se envolvem num assunto desproposital
A cidade dorme pra ela poder dançar
No meio da rua
Como uma onda movida pelo vento
Como uma brisa que faz a onda se quebrar
Quando apertamos as mãos
uma na outra
de olhos fechados
A noite cobria nossos sentidos
Nessas horas, perturbados, mas atentos
Um beijo fez a noite virar dia…
Trocamos desejos sutis que corriam no sangue a mil
Das nobres veias e olhos puxados
Um contato se esconde num momento de descontração…
A cidade dorme enquanto estamos na rua
A planejar as horas seguintes….
E amanhecer já é mais um dia….Igor Ribeiro/OAEOZ
1999- De Inverno – quatro músicas espalhadas por 15 deliciosos minutos
Pra começar, gosto dessa capa, dos tons laranja, das arvores cinematográficas. Pra seguir, é a música deu nome à nossa empresa, ao festival e a todos os eventos que fizemos depois, “De Inverno”.
Aí entra a melodiosa De Inverno, talvez a canção com o trecho mais cantarolado por mim ao longo dos anos (as folhas secas de outono, as flores mortas do inverno num dia de verão) e que fez parte do repertório do reencontro da banda, com seu riff de guitarra que me leva pra lá e pra cá, como folhas felizes dançando com o vento…
Confissão de amor, sentimento de falta, medo e insegurança…eu sempre vi tanta entrega nas letras do Igor, e isso me chamava a atenção, que “um menino” – porque ele era um menino, praticamente, vamo combinar – fizesse letras com aquela poesia – afinal, ao redor dele, era quase só canções em inglês. Não são letras bobas, ele fala de maneira suave sobre sentimentos que estão por aí, tantas vezes escondidos.
Nessa música/disco, a guitarra parece mais confiante, como se o tempo juntos tivesse dado os frutos da convivência que aproxima e torna tudo mais natural. Eu sei porque: coisa de quem tocava bastante junto, eles se conheciam, sabiam o passo de cada um daria. Neste álbum está a formação clássica da banda: Ivan, Igor, Rodrigo e Camarão.
Agora, já não tem mais o violino e, me parece, isso também tem a ver com a guitarra mais confiante. Tem novos espaços para preencher com música, e violão e guitarra estabelecem uma conversa mais íntima. O baixo continua passeando, de boa, e eu vejo, o Rodrigo indo pra dentro da canção, tocando com os olhos fechados, enquanto seus dedos criam uma cama macia para gente se afundar sentindo o cheiro da chuva, com gosto de lágrima.
Desgosto
Sentir você,
Lamento não te entender
Odeio, odeio, odeio, odeio
Querer você
Num frio de agosto
Abro os olhos no escuro
O frio já passou
Apenas não preciso de ninguém
pra ser feliz
Em qualquer estação
Dizem que alegria é
brincar de ser feliz
Num momento de felicidade
Dizem ser verdade
Deixar tudo pra trás
As folhas secas de outono, as flores mortas do inverno num dia de verão.
Desgosto, Sentir você
lamento não te entender
Odeio, odeio odeio, odeio, querer você
Num frio de setembro
Abro os olhos no escuro o frio já passou
Apenas não preciso de ninguém pra ser feliz
Em qualquer estação
Dizem que alegria é brincar de ser feliz,
E num momento de felicidade
Dizem que é verdade
Deixar tudo pra trás
As folhas secas de outono, as cores mortas do inverno
Num dia de verão….Igor Ribeiro/OAEOZ
Ai vem Caricatura Triste. OAEOZ traz (e tem) o tempo em suas composições. É feito de gente que gosta de viver o aqui e agora, com seus atropelos e tropeços, mas ciente de que estar de verdade aqui é o mais importante.
Sinto, mais uma vez, como essas canções ficaram em mim…eu nem lembrava direito do Ep, mas as músicas ainda sei todas decor. E continua sendo o que era na época, mas de um jeito diferente agora. É vida pulsando, é deixar o tempo passar, é respeitar cada fase, cada uma com seus desejos que a gente só ouve se escutar de verdade… e agora, com essa remasterização, tá tudo mais claro.
Gato Preto – me lembra a Manuela, nossa primeira gatinha preta, miúda, dona de todos os recantos da casa das jabuticabas e até do pastor alemão, o famoso Dogui. É a música que vai chegando, pata a pata, ocupando espaços, se escondendo, se mostrando… encara de longe, como um gato “se movimentando lentamente”, quase numa tocaia, envolvendo a gente numa certa letargia num começo de noite quente… E aí, ela se mostra toda. O som ergue a cabeça num embalo que leva a gente por caminhos maliciosamente lúdicos. É malandrinha, malemolente, tem um balanço de embala a gente num fim da tarde bom.Aqui, o baixo parece ter algum efeito…. tem, sim Rodrigo, contaí.. rsrsrs
Desde que voltei a ouvir, essa música tem acordado em mim. Culpa do Igor, d’OAEOZ e da Chanel também, que vem ronronando tentar me acordar de madrugada para ir brincar com ela… e eu passo o dia cantarolando que ela passa o dia rasgando cortinas…
Sedução, carinho, carícias musicais, corpos e odores para ouvidos atentos. E, como na outra música parece que é a guitarra que me carrega pra lá e pra cá, aqui é o baixo que envolve naquela que hoje é uma das minhas perversões favoritas… kkkk, tocar (e sentir, perceber, aprender) contrabaixo.
Sou como um gato preto
se movimentando, suavemente,
unhas e dentes rasgam a pele…
feridas no escuro
poema de marcas
e as costas de minha namorada
marcas de unha e sangue
doce saliva, doces odores
minha gata branca descansa em meus braços
ela passa os dias rasgando cortinas
eu passo o dia pensando em
colocá-la
dentro de uma caixa de papelão
uma fita vermelha
um laço no pescoço
uma fita vermelha
papel de presente
Igor /OAEOZ
Pra terminar, valeu e tá valendo muito OAEOZ. Obrigada. E Obrigada ao Manoel pela iniciativa que a gente não tomou. É bom ter novos parceiros.
EM TEMPO: O período de ensaios e o show no 92 foram demais! Viver isso de novo foi muito bom e aqui no meio desse texto tem vídeos do dia deste show. Pra resumir, foi um prazer notar a alegria deles pelo reencontro, as tardes voltaram a ser iluminadas pela amizade, amor e carinho de pessoas que se encontraram na juventude e conseguiram seguir por perto pra se reencontrarem agora, junto com novos parceiros. A empolgação do Paulo, baterista de agora, segue, ele quer mais shows.. rsrs. E o Martinuci, quem botou pilha pra este reencontro, inclusive, é incrível a forma (não sei se é a melhor palavra) respeitosa – achei a palavra! ele entra na viagem, compartilha, vive junto, reconhece coisas legais – com que ele dialoga com artistas de diferentes perfis e personalidades.
Os vídeos que ilustram este texto são do show de reencontro que eles fizeram para celebrar o lançamento em streaming de toda a obra. Por ora, como já disse, foram os primeiros dois eps. Fiz questão de usar os vídeos de agora, para falar de uma obra construída há mais 25 anos, pra mostrar que os ‘meninos’ cresceram, o tempo entre nós diminuiu, de certa forma, e eles continuam mandando muito bem!
Fotos: Ivana Cassuli
Fique atento para as cenas (sons) dos próximos capítulos.