O ar gelado sempre traz com ele as lembranças. Todo ano é assim, mas esse ano tudo mais tá diferente. É abril ainda, e o ar está muito seco, não tem umidade. Não chove na cidade há mais de 60 dias, nem uma garoa, que seja. Nem as chuvas de março fecharam o verão que, de todo modo, quase não aconteceu por aqui. Agora, o sol, a grande bola amarela, seca a pele, racha a terra, mata as plantas, enquanto o ar parece querer cavar sulcos na pele que começa a querer ceder, do mesmo jeito que o chão de terra, lá fora. Até a grama tem imensas manchas marrons cada vez mais evidentes, entre o verde que resiste. É o sul tropical. É outono aqui. O noticiário do meio dia avisara que que o céu estaria azul, sem brancas nuvens pelo menos por mais uma semana – e outra semana veio, e outra ainda e continuamos aqui com essa “seca na alma” e sem poder viajar. Uma seca assim não se via por aqui desde mais de 50 anos atrás, dizem os entendidos do clima, segundo nos informa a moça do tempo, na televisão.
Acordei cedo, antes das 8. Nem os caras da obra do vizinho chegaram ainda; acordei antes das máquinas, das conversas ou do radinho de pilha sintonizado no pastor que fala da “gripe nova” como se não fosse nada além da vontade de deus (mais uma vez ele a disseminar destruição, medo e abandono – nunca é o homem o responsável pelas merdas que faz!) me acordarem.
A gatinha preta brinca com o tênis no chão; o cachorro tá no tapete da cozinha, onde pega sol; a cachorra, na sala, tá acomodada no sofá. Cubro ela e volto pras cobertas!
O pássaro canta no alto do cedro. Eu, sem vontade de sair do quarto. A gatinha ronrona, agora deitada outra vez em cima da minha barriga. Volta e meia empurra a cabeça contra a ponta do caderno ou faz da caneta o seu melhor brinquedo – o movimento da escrita faz com que a caneta lhe atraia mais que o tênis, que depende dela para ter vida; a caneta não, parece viver nos gestos de sua humana, a quem, claro, ela tenta distrair, mostrando malandramente os olhos verdes por sobre o caderno.
É abril. É Outono abaixo, bem abaixo da linha do Equador. Tá frio, muito frio, mas não tão frio quanto ficará em breve. Penso nos cachorros que encontramos na rua a cada passeio. A gatinha estica a pata, quer atenção. Dou água, volto a me ocupar dos cães. Eles me preocupam, com esse frio. Penso que podia improvisar um ninho entre as plantas, na frente da casa. Decido conversar com a vizinha. Aqui no bairro, vários vizinhos deixam água e comida pros caninos que vivem na rua ou em casas mantidas fora do portão. Mas, a chegada do frio é uma preocupação a mais.
Já morei em lugar mais frio. Mais ao sul. Com gente que viera de lugares ainda mais ao sul. Sinto muita falta do fogão a lenha, muita falta. Não só do calor do fogo, mas também das pessoas e do amor que a imagem do fogão a lenha me traz. Sou uma pessoa nascida em outro milênio. E viver entre milênios que acabam e começam é chacoalhar-se entre mundos em transição. Agora mesmo, tudo está a mudar drasticamente. Tudo indica que nada será como antes. Não sabemos quase nada. Estamos sob ataque e em transição.
E o ar gelado sob o sol amarelo só me faz lembrar a falta que um fogão a lenha faz na vida da gente. Pelo calor e pelo amor. Recomecei a ler um livro pela quarta vez. Mas, tudo – pássaros, frio, ar gelado, pensar no fogão a lenha – só me leva de volta para o aconchego das lembranças.
Catarina já rabiscou muito sobre essa saudade crônica que nos habita. E a chegada anunciada do frio, no meio da seca que seca até a alma, também a acordou cedo e a pegou com caneta e livro nas mãos. Acho que o relógio tá errado – agora que o povo da obra chegou! Deve ter sido o tombo que levou ontem que o tirou da “hora certa” – mas quem precisa de hora certa sem nada com hora certa pra fazer agora?
A gata voltou a dormir. O cães também. Catarina não. Ao seu lado, ele chuta algo em seu sono agitado – eu abraço. Ele é a única pessoa que posso abraçar – me ocorre, neste instante!
A parede branca ganha meus olhares e lembro das ripas, das finas e das mais largas, intercaladas, da antiga casa em que cresci. É pra lá que dias assim me levam. É do amor que tinha ali que os dias gelados assim me lembram.
Qual era mesmo a cor das paredes? Lembro de um azul suave – ora vejam só, a mesma cor presente em todo canto da nossa casa, não tinha me dado conta disso. Se puxo pela memória, quase vejo as madeiras largas da velha casa que agora, pelo que sei, não existe mais. Às vezes, eu ficava contando quantas das mais finas formavam o forro do teto do quarto que nunca foi só meu – tinha o calor do amor deles fechando as frestas. Quantas eram mesmo? E porque essas cenas voltam à minha cabeça?
Na verdade, as lembranças de épocas distantes balançam emoções secretas, convocam sensações remotas que vivem nas vielas do meio século da vida vivida até aqui…
Meu estômago tá reclamando – se eu tivesse nos meus primeiros anos de vida já teria um café na xícara, não raras vezes com ‘graspa’, para esquentar mais. Ela já teria ligado o radinho em cima da cônsul vermelha e feito o fogo onde eu aqueceria as mãos pequenas posicionando-me na frente da portinha de onde a ponta das lenhas escapavam. E as chamas, lindas, avermelhadas e amareladas, dançavam virando brasas antes de irem às cinzas!
No começo do meu tempo, quando eu ainda estudava a tarde e ficava no bar pela manhã, lembro tão claramente dela trazendo um pequeno caldeirão cheio de brasas, que fazia as vezes de uma fogueira dentro de casa, para me esquentar. Ela era toda cuidados comigo. Eu sabia, sem saber, o quanto era amada! Pouco me importava o que o resto do mundo sabia (ou dizia) sobre como eu vim ao mundo.
Eu sabia, sem saber, o quanto era amada!
Foi o frio o que mais ficou na minha memória afetiva, embora fizesse muito calor lá, também, terra de planaltos em que a imensidão do céu azul parecia sem fim… terra de um tempo que passava mais demorado.
E eu tinha lá meus privilégios. O fogão à lenha, claro; o café com “graspa”, a fogueira-tacho de brasa dentro de casa e o restinho da gemada do meu avô…. ah, aquele restinho de café de adulto era um chamego pelo qual esperava com o coração saltitante de tanta alegria e ansiedade… eu lembro da sensação, era algo entre eu e ele, o meu avô. Era sagrado, pra mim, e um orgulho, saber que era algo “só nosso”.
Ah, que boas lembranças, diria Catarina!!
Sim, eu responderia, elas aquecem o coração de quem gosta de ouvir e contar causos. Elas me aquecem em dias secos assim.
Deveria ter chovido mais antes de chegarmos aos dias de céu azul gelado, como este de hoje. Mas, tá tudo diferente dessa vez. Sem abraços para dar ou ganhar, sem encontros e proximidades. Melhor mesmo é lembrar, então. E aproveitar pra não esquecer.
Que totiar o pão no café é uma das coisas mais gostosas, apesar dele ficar molenga! Que comer polenta com leite é degustar um manjar dos deuses feito por deusas. Que nunca mais você ganhou abraços como aqueles. Que o fogão a lenha na casa dos seus avós foi, desde sempre, uma das melhores coisas dessa sua vida. É o que sussurra, sabiamente, a Catarina.
E que você nunca mais vai ficar na frente daquele fogão aquecendo as mãoszinhas. Mas, aquele ‘calor-amor”… ah, esse sempre vai te envolver no melhor dos abraços. Sempre que você se permitir não esquecer.
…vou passar um café pra acordar.